Não tenho uma vida perfeita. Já dizia minha amiga Isabela, todo mundo vê as pingas que eu tomo, mas não vê os tombos que eu levo. Você acaba parecendo superficial ou fútil porque não idolatra os problemas e foca na solução. Isso não me impede de sofrer, mas me permite deixar o que é ruim no passado, ir adiante e não guardar rancor. Daí vem um problema sério: eu me desapego tanto da experiência ruim, que "emburreço". Passo por cima, perdoo e me agarro à esperança de que a vida há de dar um jeito e irá consertar tudo. E esqueço que não basta eu querer que a vida seja boa. Outras pessoas estão envolvidas...
Mas daí outro dia, com as ideias fervilhando, trombei com Dr. Artur, um oftalmologista que eu nunca tinha visto antes e com quem estava fazendo minha primeira consulta para monitorar o efeito dos medicamentos do lúpus nos meus olhos. E pouco depois que resumi essa história do lúpus e contei que estou há 1 ano e meio em remissão, sem corticoides, ele parou de examinar os meus olhos e dissecou a minha alma. Seguindo uma lógica assustadora através de seus questionamentos sobre minha postura diante da doença e da vida, ele examinou a minha alma.
Como quem não queria nada, ele foi me perguntando sobre como reagi a cada etapa do lúpus e a cada reação das pessoas ao meu redor durante o período de atividade da doença. Falei sobre o quanto fiquei chateada ao me olhar no espelho e ver o rosto ferido, os cabelos caindo e as bochechas inchando. Meu corpo mudou e perdi o controle sobre ele, sobre minha saúde e especialmente sobre minha qualidade de vida. Mas nem por isso deixei de tomar os remédios, de dar tempo ao tempo e de confiar. A negação inicial se transformou em aceitação alguns meses depois e decidi seguir minha vida adiante.
Sai do ninho da minha mãe, morei com outros estudantes aos 17 anos, encarei a faculdade como prioridade e comecei a trabalhar duro para conquistar o meu futuro. Batalhei especialmente para mostrar que eu não era apenas uma garota de saúde frágil, mas sim uma pessoa que tinha aprendido a dar valor à vida, independente do desafio que me era apresentado. Aprendi a conviver, a aceitar a minha condição e fazer o melhor possível com o que eu tinha. Durante anos fiquei distante do mar, evitando o sol, pois era naquela época um grande vilão. Mas não deixei de ser jovem, de ter amigos, de ir a festas e nem de me apaixonar, por mais insegura que eu ainda fosse. Aceitei, mesmo com aquela sombra me rondando. Não aceitei parar de viver.
E depois de contar outras tantas coisas para o Dr. Artur, ele me disse exatamente o que intuitivamente eu entendia sobre a minha postura diante do lúpus, da vida. Que eu tinha me permitido aceitar a vida que estava programada para mim, que eu tinha aprendido a confiar em algo maior que sabia o motivo daquela experiência, que eu tinha aprendido a converter o sofrimento em presente, em uma chance de viver de forma diferente. Eu não me entreguei e que o mais importante era que hoje eu podia SEMEAR a minha história para que outros pudessem ter esperança, pudessem confiar no aprendizado que nos era ofertado.
Não falei para o Dr. Artur sobre quase nada da minha vida, não falei da Corrente do Bem, não falei de quantas pessoas com lúpus já me procuraram em busca de um conforto, nem de como fui referência quando outras pessoas próximas a mim descobriram que também carregariam a borboleta do lúpus... Não contei sobre minhas decepções ao longo da vida, não falei sobre como reagi a elas, mesmo que levasse tempo para a dor ir embora. Mas falei para ele sobre como consegui aprender a controlar o lúpus a meu favor. Ele é meu alerta, meu termômetro, meu limite. Para o estresse, para a angústia, para a infelicidade. Meu corpo me diz o que ando fazendo de errado e que fere minha alma... O lúpus é o registro do meu instinto, meu sexto sentido, minha inconsciência representada.
E daí contei para o Dr. Artur sobre como consegui estabilizar os efeitos da doença, mesmo no período mais estressante que vivi em 2009. Eu aprendi a não carregar o problema dos outros, aprendi a não me sentir culpada pelos erros dos outros e aprendi, principalmente, a não guardar meus sentimentos... E por mais que eu não gostasse de confrontos, falar, falar, falar e nunca deixar as coisas mal resolvidas passou a ser um medicamento oral, infalível. Parei de me esconder, parei de carregar pesos alheios e comecei a viver a minha vida, seguindo uma disciplina com severidade: por mais que alguns tivessem sentido o cordão umbilical romper, por mais que às vezes eu parecesse dura, por mais que às vezes eu parecesse ser egoísta. Entendi que não posso resolver os problemas de todo mundo e que não posso mudar as pessoas - a mudança tem que partir delas mesmas.
A adaptação a essa nova "Carol" foi dolorosa para muita gente, mas me tornou uma pessoa mais sincera, transparente, honesta e, especialmente, saudável. E daí, quando parei de brigar com o destino, passei a seguir adiante sem desconfianças, descobri que podia ser uma pessoa mais leve, menos angustiada, mais feliz. E quando Dr. Artur, em suas perguntas inquietantes, me dissecava a alma, segurei meus olhos embaçados para não chorar e entrar em pânico sobre o meu medo de não conseguir ser a SEMEADORA que ele me dizia que eu era... Que me sinto frustrada por não conseguir fazer as pessoas serem mais felizes, mesmo as pessoas que mais amo. Que me sinto pequena diante da força da negatividade que algumas pessoas se acostumaram a cultivar. Que me sinto fraca às vezes diante da insistência das pessoas em serem infelizes.
Daí o Dr. Artur me sacolejou e disse que o meu papel era semear, não obrigar a semente a nascer. Que eu tinha o papel de contar a minha história, mesmo para aqueles que não sabiam ouvir, que só sabiam reclamar. Que eu tinha o papel de ensinar pelo exemplo para que os outros se sentissem mais confortáveis e não ouvissem uma teoria da boca pra fora. Que eu era uma SEMEADORA e que a minha postura de aceitação demonstrava a minha confiança em algo maior, fosse Deus ou qualquer representação de outra crença. Que era melhor a minha postura de aceitação sem questionamento do que aquela postura em que as pessoas que se julgam mais "fiéis e crentes" que entendem as experiências como castigo e não como aprendizado. Que era meu papel semear a fé em sua forma pura, sem preconceitos religiosos, sem amarras ideológicas.
Ah, Dr. Artur, se o senhor soubesse como eu queria ser mais eficiente nesse papel de distribuir as sementes da esperança, da leveza, da positividade... Quem me dera eu fosse superior às minhas limitações humanas, como irritação, falta de paciência e ansiedade... Quem dera eu pudesse chacoalhar cada um para que aprendam a viver a sua vida com plenitude... Quem dera eu tivesse mesmo todo esse poder... É muita responsabilidade sair por aí semeando uma visão de mundo, uma visão de fé na vida. Eu aprendi pelos meus próprios tropeços, mas cada um tem seu tempo... E daí sou realmente só uma semente... Miúda, mas insistente. Entretanto, sem terra fértil que se permita ser cultivada, não há semente que vingue...
Nenhum comentário:
Postar um comentário