03/04/2010

Aquele que guiou Eli


Há muito tempo não vejo um filme que me incomoda. É fato que o cinema como um todo, aquele do tipo pipoca, tem me comovido muito pouco. Sendo sincera, cheguei ao cinema na última quinta sem qualquer expectativa sobre o “Livro de Eli”. Depois de um longo dia estressante, eu queria mesmo era liberar a minha tensão em cenas de ação. Deixei de lado “Um Sonho Impossível” e encarei a fotografia cinzenta de Eli.

A princípio, violência, algumas cenas absurdas até para um super herói, uma obsessão fria que surpreende. Um Eli (Denzel Washington) fechado, sério, carrancudo e inexplicavelmente obstinado com um Oeste desconhecido. Do outro lado, alguém que conhecia o poder de um livro especial, sua capacidade de mobilizar multidões e de romper o desespero de um mundo destruído. De repente, Solara, nome este que remete ao astro que ilumina, clareia, guia, esclarece. Mas também ao astro que, sem ozônio, fortalece o flash das bombas, cega e empurra a humanidade para as cavernas que um dia já habitamos.

Quando Eli optou por não ajudar o casal atacado pelos perversos, dizendo “não é da sua conta, siga em frente”, realmente questionei sobre o conflito entre a meta e o ser humano. Quantas vezes não nos cegamos em busca de objetivos fixos? Quantas vezes não estamos completamente suscetíveis ao nosso foco egoísta, deixando de lado tantas coisas mais importantes? Quanto já não nos sentimos culpados por trocar tudo por nossas vontades pessoais? O peso da escolha, sempre um sombra em nossos planos. Tudo pelo que optamos é uma recusa às outras opções.

Subitamente Eli precisa escolher entre sua preciosa meta e o verdadeiro significado do que ele carregava. A vida de Solara prevalece e depois ele se explica: “finalmente coloquei em prática o que o livro dizia”. Ele se liberta de um peso desnecessário, confia em si mesmo e finalmente entende que Solara era sua própria luz, guiando seu caminho até o tão esperado Oeste, que curiosamente é a prisão de Alcatraz. Sutilmente a prisão se torna um refúgio e onde toda a verdade finalmente se apresenta.

(Se você ainda não conhece a história de Eli, não continue a ler. Agora vem o meu comentário sobre o desfecho dessa obra surpreendente.)

Depois de muito sofrimento, luta, resignação e persistência, Eli, sem seu livro, se apresenta ao Oeste, então destinado a recuperar o conhecimento do mundo. A prisão agora é uma grande biblioteca que assume a função de resgatar uma história enterrada pela guerra. Os livros tornam-se preciosos onde não há mais telefones, tecnologia de ponta, internet, comunicação. Aqueles que sobreviveram ao “flash” assumem ironicamente o papel de responsáveis pelo futuro do mundo. Mas Eli, sem o livro, anuncia: “Eu tenho uma bíblia de King James”.

Lembro-me bem do impacto que “Ensaio sobre a Cegueira” teve sobre mim. E mais uma vez algo semelhante mexe com meus conceitos de fé, especialmente a fé que temos em nós mesmos e em nossos propósitos de vida. Eli é cego. Você imediatamente quer assistir a todo o filme para rever cada cena em que ele mata muitos malucos, sente o perfume do shampoo à distância e o cheiro dos carniceiros, ouve o som do inimigo pela vibração do asfalto, lê seu livro às escondidas, não questiona a ninguém qual é o rumo do Oeste. O livro em braile se descortina na outra extremidade do mundo exterminado, enquanto Eli dita cada palavra da Bíblia para uma geração que ainda não conhece a história daquele que se sacrificou por seus propósitos divinos. Eli ressuscita os ensinamentos que podem finalmente trazer esperança a um mundo em ruínas.

Se você não acredita em obstinação e sacrifício, não irá entender como um homem cego é capaz de tantas façanhas. Não conseguirá acreditar que um homem que não enxerga é capaz de lutar com tamanha agilidade. Nem sequer conseguirá entender como um homem pode decorar um livro, mesmo que ele tenha se dedicado a isso durante 30 anos. Solara veio apenas como mais um milagre, iluminando seu caminho rumo ao verdadeiro destino. Não sou a pessoa mais entendida do mundo sobre religiões, sobre novos e velhos testamentos, mas compartilho da mesma fé que permitiu que Eli enxergasse tudo com os olhos do coração: a fé no futuro.

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