26/07/2011

Quem tem um olho é rei?

Escrevi sobre o filme Ensaio sobre a Cegueira em 18 de setembro de 2008. Estou desenterrando alguns textos aqui!
 
Cada um só enxerga aquilo que quer realmente ver. É um ditado? Sabedoria popular? Instinto? O que importa é o fato de que nós, seres humanos, cegos ou não, só enxergamos aquilo que desejamos, ou seja, vamos sempre nos guiar pela ignorância enquanto esta nos for mais agradável.
 
O que vi neste filme é aquilo que vemos em poucos: nossa fragilidade. A maioria dos filmes nos trata como deuses, como símbolos de força, como criaturas perfeitas. Nesta oportunidade única somos expostos aos nossos maiores medos e defeitos: a realidade crua faz todos se contorcerem nas poltronas, seja por incômodo, por nojo, por agonia.
 
O que vi neste filme foi exatamente aquilo que poucos percebem: as imagens são claras e fúnebres como o próprio tema, representando a nossa cegueira como seres conscientes do nosso papel social. Não conseguimos escapar daquele mundo cinza onde mergulhamos em nossas primeiras necessidades, aquelas que suprimos como meros animais guiados pelo instinto. Somos reféns das nossas próprias loucuras.
 
O que vi nesta seqüência de personagens tão realistas é exatamente aquilo nos recusamos a imaginar: um mundo onde perdemos este controle que hoje insistimos em caracterizar como nossa grande realização no mundo, ou seja, perdemos a humildade diante de nossa natural fragilidade como seres vivos. Cada passo rumo à cegueira mundial, descobrimos mais sobre nós mesmos, deixamos transparecer tudo aquilo que escondemos diariamente graças à nossa razão.
 
O que vi diz mais respeito ao que senti do que às imagens propriamente ditas. A condição humana se deteriora em tão pouco tempo e daí: o que seria do nosso mundo se não pudéssemos sequer mantê-lo em um estado saudável e limpo? As disputas crescem proporcionais ao desespero e daí: a que ponto podemos chegar ao perdermos a razão que nos caracteriza diariamente e que controla nossos impulsos mais íntimos? Tudo aquilo que postulamos em filosofias ao longo de milênios se quebra como cristal e daí: será que podemos mesmo sempre garantir o controle de nossos desejos? Numa cidade onde a luta diária já nos torna competitivos por natureza, somos obrigados a brigar por aquilo que nos é mais fundamental: a dignidade.
 
O que importa é nos colocarmos numa situação semelhante, seja na posição dos cegos bonzinhos, dos cegos cruéis, dos cegos reais ou daquela que por algum motivo se manteve imune. Aliás, que imunidade é esta, concedida ao personagem da Julianne Moore, que lhe dá a condição de liberdade almejada por todos? Até que ponto esta liberdade, esta autonomia não lhe faz sofrer mais do que todos aqueles que não estão enxergando com os próprios olhos a desolação humana e a perversidade descarada? Até que ponto você realmente gostaria de ser um dos únicos providos do direito de ver tudo aquilo que todos iriam preferir desprezar? Este personagem apenas nos faz enxergar que a maioria de nós poderia se acovardar facilmente diante da visão de um mundo terrivelmente abandonado e que carregar um mundo cego em suas costas torna-se um fardo que poucos poderiam suportar com nobreza.
 
Sim, meu estômago embrulhou em várias cenas de violência durante a permanência dos infectados no hospital abandonado. Embrulhou inúmeras vezes em cada cena onde as condições sanitárias nos mostravam a discrepância em relação à nossa rotina. Embrulhou mesmo, o tempo todo. Embaçou a minha própria visão do que somos, a todo instante. Enfim, de onde surgiu a cegueira é o que menos importa. Nesta versão cinza do mundo, quem tinha um olho podia realmente ajudar, mas ninguém jamais almejaria reinar uma terra onde a esperança não consegue iluminar nossas almas.
 

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