26/07/2010

Biografia Esmiuçada

Cenas de cinema permitem uma expressão palpável de meus defeitos, qualidades e outros pormenores. Fiquei esperando alguém se manifestar e dizer se nota alguma semelhança com um poderoso chefão, ou com um príncipe da Pérsia, ou com um astronauta numa odisséia. Mas não ouvi nenhum pio na imensidão desta rede que nos conecta, mesmo com uma profundidade questionável diante das possibilidades que o cara-a-cara oferece.

Hoje sou feita de livros, tanto por aqueles que li, como por aqueles que ainda estão à espreita, como por aqueles que escrevi e escondi num velho baú de lembranças. Talvez hoje eu seja mais bem representada exatamente por aqueles livros que não escrevi, e que provavelmente nunca escreverei. Eis alguns que são marcos na minha memória, fora de ordem cronológica, exatamente para confundir a ordem da minha formação como leitora.

A Fonte dos Desejos dos Wuzzles: Acredite, o primeiro livro que comprei, quando ainda era criança, falava de um elefante que podia voar, dentre outros sonhos malucos deste tipo. Eleru... Eu e meus velhos elefantes... Do amigo invisível cor de rosa que eu escondia numa caixa de fósforos e que me garantiu a publicação numa agenda da Editora da Tribo... Ao meu feito de possuir uma foto em cima de um elefante. Claro, isso pra você pode ser insignificante, mas acredite: se apenas ao ler você já soltou um risinho no canto da boca, não sabe a diversão que reside nas pequenas coisas e nos mínimos desejos realizados, com ou sem uma fonte mágica.


Pra quem nunca ouvir falar do Eleru...


O Lobo da Estepe, de Hermann Hesse: Se eu posso dizer que um livro me mudou como pessoa, numa fase especialmente confusa de minha vida (aos 16 anos), eis o tal. Um rebelde quase sem causa, lutando contra si mesmo. “Uma vida fácil, um amor fácil, uma morte fácil – tais coisas não eram para mim”. Assim eu pensava aos 16, criando meus mundos intermediários, melancólica como os ídolos que hoje ganham fama em lutas de vampiros e lobos. Mas eu era aquele lobo, aquele velho rabugento. “Que havia sido de mim, que tivera as asas da juventude e da poesia, o amigo das musas, o viajante do mundo, o ardente idealista?” Sem mais.

Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley: Você aí, que se sente um fantoche... Que não sabe se o futuro realmente está em suas mãos ou se você está simplesmente sendo manipulado, no estilo “Matrix”! Talvez mais uma forma de me agarrar à idéia de que a liberdade existe e que não somos peças num teatro social. Além de outros questionamentos... “(...) o sentimento religioso tende a desenvolver-se quando envelhecemos; tende a desenvolver-se porque, à medida que as paixões se acalmam, que a fantasia e a sensibilidade vão sendo menos excitadas e menos excitáveis, a razão é menos perturbada em seu exercício, menos obscurecida pelas imagens, desejos e distrações que absorviam; então, Deus emerge como se tivesse saído de trás de uma nuvem (...)” Mais uma vez, sem mais.

A Arte da Felicidade, Dalai Lama e Howard Cutler: Um dos livros que mais sofri para terminar de ler. Aquela sensação constante de ler um parágrafo e imediatamente sentir um remorso, ou mudar uma atitude, ou repensar um gesto. Nada tão facilmente digerido como o sorriso leve estampado na capa. “A ansiedade e a preocupação excessivas podem, como a raiva e o ódio, ter efeitos devastadores na mente e no corpo, tornando-se fonte de muito sofrimento emocional e até mesmo enfermidades físicas.” Ensinamentos de compaixão, aceitação e simplicidade – um choque para minha idéia egoísta de mundo, como se só eu pudesse sofrer naquela intensidade. Eis que os sentimentos somatizam sintomas, ou seja, nada como buscar a felicidade para se viver melhor.

Mulher Solteira Procura Homem Impotente para Relacionamento Sério, de Gaby Hauptmann: Se posso dar um conselho ao mulherio que ainda cria príncipes, aqui está. Nada melhor do que uma boa história, com a cara da mulher moderna, para te prender e nem por isso arrasar suas esperanças que um dia você pode ser premiada. Lembro-me como se fosse hoje: virei a noite, durante o período da faculdade, para ler o livro, presente de um amigo. Pena que naquela época eu ainda rabiscava tão pouco meus livros... Mas não me impediu de logo em seguida ler “Homem Bom é Homem Morto”, da mesma autora. O título feminista não deve te assustar!

Contato, de Carl Sagan: Não bastava o filme – precisava ler o bendito, direto de quem o inventou. Acho que nada jamais conseguiu se aproximar do meu conceito de fé como as idéias deste livro. Fé no divino e no humano. Uma pergunta constante sobre a existência de Deus e vida em outros planetas, o questionamento de uma ilusão coletiva e uma ciência suspeita, mas uma frase definitiva: Se o universo está todo vazio, isso sim é um tremendo desperdício. Não posso negar que todas as naves espaciais que construí nos meus quintais e no terraço do prédio me prenderam à possibilidade de uma grande descoberta, como as que Arthur Clarke acredita que serão feitas quando pesquisarmos os mares de Europa, a lua de Júpiter. Por este mesmo motivo, acabei me deparando com “Bilhões e Bilhões”, do mesmo autor.

Outra Vez, por Ernesto Che Guevara: Não tenho nem um traço de guerrilheira, mas sofri com a asma durante anos e aos 14 quis ser médica. A vontade passou logo, pois outros dois desejos me moviam ardentemente – a oceanografia e as viagens pelo mundo. Obviamente neste livro me deparei com o segundo traço de minha personalidade, que carregarei por toda a vida. Nem tudo era política ou revolução para Che nesta fase de sua vida e através dele viajei por toda a América Latina que tanto me atrai. História, gente, cultura, natureza. Resultado: Desde então tracei todos os meus planos de viagem para os próximos 20 anos, mesmo que eu não consiga realizar todos. Além disso, passei a carregar qualquer coisa de Che quando viajo, talvez numa superstição idiota, mas para mim é como um ritual de comemoração. Em Chichen Itza, onde Che também esteve, eu estive e pisei nas terras de maias e astecas. Em Buenos Aires, onde Che viveu alguns bons anos, eu também estive. Ainda faltam muitos lugares... Sem guerrilhas.

Em Busca do Sonho, de Heloisa Schürmann: Como se não bastassem as viagens de Che, eis um livro onde o mar representa uma opção de vida. Uma viagem feita por uma família contemporânea, com meios reais e planejáveis. Não, não pretendo velejar assim... Mas este livro me rendeu outras tantas opções de destino para toda uma vida. Não sei, porém, se terei tanto tempo assim. O mundo ainda é grande demais para o meu bolso, apesar de ser miúdo nos meus pensamentos. Escrevi uma carta para a família Schürmann, concorrendo a uma vaga temporária no veleiro. Não era um e-mail. Nunca recebi resposta. O jeito é ir com meus próprios pés e sonhos. Quem sabe eu também não encontre uma fonte dos desejos e possa desfrutar de algumas asas temporárias? Vou alternando entre as previsões de grandes pensadores e aventuras rumo à Ilha Maurício...


Abeleão, Hipocó, Rinocaco... Etc!

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