10/07/2010

Era uma vez...

Num reino “tão tão distante”, era uma vez. Era uma vez uma garota que antes se sentia sozinha constantemente, sem conseguir sobreviver somente com sua própria presença. Solitária em qualquer multidão, por mais que o mundo fosse muito maior do outro lado da rua. A garota se sentia sem prumo, sem leme, nem sequer uma bússola. Pulava tijolos dourados, numa terra de homens de lata, leões falantes e espantalhos estranhos. Sem contar com o elefante que voava com suas orelhas gigantes.

A garota tropeçou em muitos tijolos, de tamanhos variados. Não adiantaria plantar sementes de árvores mágicas, pois o céu não era certeza. Caiu em buracos e correu atrás de coelhos e ilusões, conhecendo a si mesma. Decifra-me, pois devoro-te, sempre dizia seu destino no sorriso de um gato capcioso. Afinal, quem mandou confiar numa lagarta azul e acreditar que todo mundo se transforma em borboleta?

Como miúda e crédula libélula que era, ainda tentou outros vôos. Asas transparentes, ainda com contornos frágeis ao vento. Alma translúcida, pois insetos não têm sangue. Faltava-lhe cor, pulso. Mas ainda havia uma esperança: o pote de ouro escondido em algum arco-íris. Restava procurar o arco certo, com as cores compatíveis com sua (trans)lucidez. Haveria naquela terra do nunca algum tipo de chance para uma mudança? Ou viveria com medo de um capitão sem mão e sem coração?

Crescer não era fácil, duvidar do próximo passo era sempre angustiante. Não que acreditasse em príncipes, muito menos em tranças para um resgate. Não esperava sequer por um sapo, mas ainda lhe faltava algo. Anos se passaram como se fossem séculos, até que uma cadeia de acontecimentos mudava sua rotina imperceptivelmente, porém definitivamente. A moldura não mais de uma Monalisa, mas de borboletas de um “salvador” movendo cata-ventos. Enfim, dali viria a sua salvação... Aqueles ventos tão esperados!


Quando percebeu, estava em sua torre, mas não presa. Não havia um encantamento que lhe fazia esperar por algo que viesse daquele mundo lá fora. Era dona de sua própria janela, escolhia seus próprios cometas e luas. O jardim só colhia rosas cativadas por pequenos príncipes diários: seus próprios sonhos. Colhia doces pelo caminho sem temer uma bruxa má, querendo cortar seus dedos. Encarando todos os dias uma floresta, sem lobo mau, sem maçã envenenada. Tudo podia ser mais simples e mais prazeiroso, sem receiros, sem preconceitos, sem espinhos.

Não era agora uma princesa, sequer uma fada, muito menos uma donzela singela. Era libélula reformada, sem querer ser borboleta apenas por suas cores, tão finitas como a transparência natural que já lhe cabia e não lhe pesava. Tudo era finito, não existem vampiros. Bastava seguir adiante, transformando passeios cinzentos em caminhos verdejantes e tão simples quanto necessário fosse. Acompanhada de burros falantes ou de gatos de botas? Não faria tanta diferença, pois agora ela bastava a si mesma. Qualquer um que se unisse ao seu percurso, sem expectativas desleais, era simplesmente mais um convidado para um grande baile. Mas não haveria um sapato na escada à meia-noite, certa de suas convicções e sem depender das vontades alheias.

Ela ainda não sabe o que lhe espera, nem mesmo naquele reino “tão tão distante” ou dentro de sua torre cuidadosamente adaptada ao seu umbigo. Aquela incerteza permanece, porém só do lado de fora. Por dentro agora é muito mais do que reflexo - era plenitude e dominância. Agora seguia sem anões, sem rainhas de copas, sem nenhum tipo de medo infundado. Só sabia que o caminho era longo, ainda infinito em sua aparente longevidade. Mesmo que cada dia fosse volátil como o brilho de uma fada minúscula, tudo se tornara mais leve quando se permitia viver como um garoto perdido, sem a cobrança de um dia ser gente grande. Um dia de cada vez, acompanhada das asas que realmente lhe cabem.


Obras de Salvador Dali

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