18/07/2010

Inquietação Shackletoniana


“O problema é que acabo voltando à minha inquietação, achando que minha vida é ridícula demais diante das grandes possibilidades que o mundo promete... Mas o que eu posso fazer, sem ser irresponsável? (...) Só sei que a sensação de ausência de uma grande aventura sempre vai inquietar minha alma, como se eu tivesse perdido a minha chance”. Registrado por mim na última página do livro “Endurance, a lendária expedição de Shackleton à Antártida”.

Em dois míseros dias, com intervalos para dormir, sair e comer, porém sem a televisão ligada, comecei e terminei a leitura deste livro, que pechinchei de um amigo. Precisava retomar meu hábito de leitura e neste fim de semana criei vergonha nessa minha cara lavada. O problema é que ler sobre uma viagem surreal sempre causa efeitos colaterais em uma oceanógrafa frustrada como eu. Eis o motivo do comentário acima, feito assim que terminei de ler o livro, o qual não necessariamente tem um final feliz.

Depois de passar por momentos inquestionavelmente insuportáveis, Ernest Shackleton (esse de suspensórios na foto) escreveu para sua mulher em 1919: “Às vezes acho que não sirvo para nada além de viajar para lugares bem distantes e desertos, só com um grupo de homens”. Não estou falando da boca pra fora – é uma constatação. Mas há muito tempo eu não desenterrava essa pergunta bem lá do fundo: O que vou fazer de grandioso na minha vida? Não tenho um plano e, entrando no meu inferno astral, sinto esse fantasma rondar mais uma vez as certezas que tenho hoje.

O livro fala de um grupo escolhido a dedo para realizar uma proeza jamais feita por algum outro homem, concretizando uma travessia transcontinental na Antártida. Mas chegar até lá já era um grande desafio, cortando bancos de gelo, encarando um frio doloroso, vivendo uma rotina rígida e com um cardápio monótono. A todo tempo os homens são postos à prova em nome de um objetivo maior, porém sempre comandados por um líder humano. Segundo a autora, Carolina Alexander (curadora de uma exposição sobre o Endurance), Shackleton acreditava “que os indivíduos comuns eram capazes de façanhas heróicas se as circunstâncias o exigissem; os fracos e os fortes podiam e precisavam sobreviver juntos”. Era um líder que enobrecia sua equipe, extraindo “de seus homens uma força e uma resistência que eles jamais imaginaram possuir”.

Além de toda a devoção ao seu objetivo, eis que o verdadeiro líder se descortina. Calmo, simples, perseverante, otimista e preocupado com cada homem de sua equipe. Um dos tripulantes menciona seus cuidados, como se Shackleton medisse ele mesmo os pulsos de cada um para garantir que estavam vivos, mesmo sem que eles notassem e assim não ficassem nervosos com a possibilidade da morte. O Endurance naufragou e rumaram em três barcos menores a um destino incerto. Vendavais, nevascas, privações, roupas molhadas e congeladas - tudo arquitetava um cenário infernal num mundo branco e azul feito de gelo. Da Ilha Elephant à Geórgia do Sul, o impossível se firmou como seu maior feito. Durante todo aquele tempo, o mundo viveu a primeira grande guerra mundial, mas aqueles homens travavam suas próprias lutas pela sobrevivência na natureza hostil de um território inóspito.

Quando retornaram à realidade, alguns conseguiram retomar suas vidas, outros se sentiram vazios e outros resmungaram sobre como “o tempo era ruim em Londres”. Para quem viveu 30 graus abaixo de zero, isso era realmente desconcertante. Muitos trabalharam para contar a história desta expedição, outros tantos viveram tentando repetir aquela sensação. Aquele sofrimento enorme já nem lhe parecia tão intenso diante da grandiosidade do feito. Todos sobreviveram, mesmo aquele tripulante que entrou clandestino no Endurance e acabou com os dedos de um pé amputados. Segundo consta, ele jamais reclamou dos dedos que lhe faltaram até o resto de sua vida. Muitos, no entanto, sempre se sentiram péssimos pelos sacrifícios feitos: fossem dos cães que atrasavam a viagem de sobrevivência, fossem das focas e pingüins que lhes permitiam a luta contra a fome, fosse do gato do carpinteiro.

Na viagem havia um australiano chamado Frank Hurley, com quem talvez eu me identifique (o outro personagem na imagem). Meio egocêntrico, otimista, esforçado e até idealizador de algumas engenhocas que possibilitaram algum conforto durante a aventura. Aos olhos de Shackleton, talvez uma ameaça à sua liderança, apesar de Frank sempre registrar em seus diários sua enorme admiração por Ernest como um líder. Mas especialmente por ser alguém que se arriscava pela fotografia que melhor expressasse o sentimento de cada momento, sempre pensando em como garantir que aquela história seria devidamente representada posteriormente. Imagens belíssimas, que depois ele também burlaria em nome da propaganda necessária aos seus negócios. Hurley contou através de suas imagens exatamente aquilo que nossa imaginação elabora a cada momento em que adentramos no livro.

Sempre que viajo em minhas humildes aventuras “cevecenianas”, já volto para casa com saudade do que vivi. Como se um pedaço de mim ficasse em cada canto em que estive, como se eu criasse um vínculo com aquele lugar e com cada episódio. Assim como Hurley, também acredito que uma imagem pode falar muito mais que mil palavras e estou sempre com a câmera em punho. Retrato minhas pequenitudes e já as vejo como enormidades! Imagine só um navio sendo engolido pelo gelo, ou a primeira imagem de uma terra onde a humanidade nunca esteve. Era como pisar na Lua, fato histórico que poucos tripulantes acompanharam em suas idades avançadas. Qual será então a sensação de deixar um lugar onde cada um morreu e renasceu todo maldito dia, todos movidos pela perseverança numa epopéia heróica? Naquelas circunstâncias, todos eram simplesmente imortais.

Um comentário:

  1. Ao assistir "Desaparecidas" pela milésima vez, uma frase: "O espírito inquieto não deixa o homem ser feliz". Não só vejo o filme repetidas vezes, como li primeiro o livro. Assunto pré-destinado? Detalhe importante: a relação de Maggie com seu pai meio índio que retorna após tê-la abandonado.

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