15/01/2010

Um conto do Haiti


Meu nome é Jean Batispte Mimosa, tenho 36 anos, nasci e cresci em Porto Príncipe. Sou enfermeira, graduada em Cuba, tenho dois filhos, viúva. Tenho cinco irmãos, vários sobrinhos e meus pais faleceram há alguns anos no último surto de febre amarela. Meu salário não passa de trezentos dólares, mas para nosso país, este é um salário razoável. Afinal, 70% de nossa população está abaixo da linha de pobreza.

Há alguns anos os brasileiros chegaram por aqui. As ondas de violência agora estavam nas mãos de outro povo, em que confiamos as nossas últimas esperanças. Ajudas chegavam, ainda que fossem tímidas. Nesta época conhecia uma senhora, médica, de uma compaixão extraordinária. Dra. Zilda Arns trouxe um alento para muitas mães no hospital onde eu ainda era só uma estagiária. Com seu toque maternal, ela buscava um conforto para pessoas já cansadas da luta constante por seus direitos fundamentais.

Há 4 dias vivo uma hipnose. Enxergo escombros, ouço vozes, sinto fantasmas. Sinto um cheiro que me assusta, mas não sei o que se passa no mundo lá fora. Qual é a gravidade daquilo que se teme? Qual é a verdadeira proporção da tragédia? Temia que fosse o fim de tudo, antes mesmo do meu último suspiro. Temia ser a última espectadora do episódio final de uma história que nunca foi fácil, que sempre nos transformou em contínuos guerreiros. Os soldados rondavam meu futuro túmulo, sentia as pessoas pisoteando um teto que agora era chão. Onde antes havia leitos, agora existiam montanhas cinzas empoeiradas, esfumaçadas pela dor.

Era uma nova guerra? Quem havia nos bombardeado? Quem era o inimigo que afrontava o meu Haiti, que apesar de todos os defeitos, era a minha terra querida? Qual gueto havia armado um atentado terrorista? Quem atingiria um hospital com uma bomba no final da tarde? Qual era a causa política, religiosa, social que havia movido esta violência?

Nenhuma resposta. A violência agora era artimanha da natureza. Quando finalmente ouvi a voz de um soldado, descobri que havia vida lá fora. Capacetes de uma guerra contra as sombras, contra os cadáveres que agora cobriam os passeios da capital do meu país. Quando a luz retornou aos meus olhos, quando voltei a sentir o gosto transparente da água, tomei consciência da realidade: um terremoto havia mudado o nosso rumo, que já não era fácil. E agora todo um país sentia uma única dor, acima de qualquer diferença, de qualquer preconceito, de qualquer fome. A fraqueza tomou meu coração, faltou-me forças nas pernas, senti que Deus havia reforçado seu exército divino.

Durante muitos dias caminharei por uma cidade fantasma, sem cores, sem árvores, sem ruas limpas. Durante muitos anos caminharei em cada rua me lembrando dos meus conhecidos em cada esquina, daqueles que se foram numa tarde ensolarada do meu Haiti. Talvez isso faça parte de um plano maior, mais não consigo aceitar que 200 mil vidas tenham sido desligadas como aparelhos de uma tomada. Ali estava a prova de nossa fragilidade, mais uma vez, como se já não bastassem as lições diárias.

Vamos todos continuar aqui, em uma situação ainda mais difícil, seguindo adiante, contando com a ajuda de outros países, da ONU, de Angelinas Jolies. Infelizmente não contaremos mais com o sorriso de Dona Zilda... Vamos ouvir por anos os gritos abafados nestes escombros. Vou sempre enxergar prédios onde hoje existem cacos. Vou sempre contar quantos familiares perdi neste dia. Vou sempre me lembrar que em 15 de janeiro de 2010 eu renasci, por sorte, por estar ali, no momento certo, no lugar exato para minha sobrevivência. Meu nome é Jean Batispte Mimosa, uma mulher desconhecida transformada em símbolo da esperança. Não queria este cargo. Não assim.

Esta é uma obra ficcional, porém de sentimentos compartilhados.

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